Friday, January 20, 2006

"O primeiro encontro com a morte que eu me lembro foi quando a nossa cachorra, Fritzil, foi atropelada pelo vizinho. Ela estava dormindo embaixo do carro e foi esmagada quando ele deu ré. Eu não vi acontecer. Não sei quem se livrou do corpo e como foi feito, mas instintamente eu entendi que não deveria perguntar sobre isso. Morte era algo secreto, misterioso, assustador, melhor deixada de lado e não pra ser vista de perto. Fritzi simplesmente se foi, em breve substituida por um novo cão, Butch, que meu pai disse que era um metade chow-chow, o que explicava a língua negra.

Eu sempre rezava na hora de dormir, mecanicamente falando 'If I should die before I wake' [trecho de alguma prece] como o pequeno bom garoto que eu era, sem nunca considerar de verdade o que aquelas palavras significavam. Eram simplesmente frases que se falavam que pareciam agradar os adultos, fáceis de decorar, estranhamente reconfortante no seu repetitivo ritual. Mas depois do extermínio misterioso de Fritzi, 'die' começou sua gradual evolução de conceito vago para algo real, algo que algum dia aconteceria comigo e com alguém que eu amasse. Iamos todos simplesmente desaparecer. Eu me lembro de chorar muito, não tanto pela Fritzi - nós nunca choramos pelos mortos - mas por mim mesmo, pela minha repentina perda de permanência. Perguntei para a minha mãe o que aconteceria comigo quando ela e o pai morressem. Ela sorriu e me abraçou, e garantiu que nada desse tipo iria acontecer em muito tempo.

Quando eu tinha 13 anos, minha irmã Mary Ann estava me levando para aula de piano quando ela foi ultrapassar e não viu o carro que vinha. Bateu de frente com o nosso Ford Pinto de 1973, quebrando o pescoço dela e a matando instantaneamente e claramente dividindo minha vida em dois: tudo antes do acidente, tudo depois. E aquele breve, eterno instante entre duas vidas em que possibilidades velhas e familiares acabavam para sempre, e novas, inimaginaveis possibilidades eram dolorosamente nascidas.

Morte é vida: uma força épica, primitiva que nos assusta e fascina, dá sentido às nossas experiências, e por fim nos consome. Como Thomas Lynch disse: A vida segue, mas nós não.

Há mais ou menos um ano atrás, eu achei uns vídeos caseiros antigos da década de 60. Sabia que estavamos em férias, em Indian Rock Beach, Florida, e que minha irmã estaria nele, junto com meu pai que fumava feito chaminé, que morreu de cancêr no pulmão, 6 anos depois dela. Eu estava muito assustado para ver aquelas memórias enfraquecidas, convencido de que seria muito doloroso e me enviaria, espiralmente, direto para o desespero (hey, nada como um recente encontro com a morte para aumentar o senso de drama da pessoa). Mas quando eu finalmente vi, fiquei surpreso no quão pouco me afetou. Ali estava a minha irmã, parecendo mais cheinha e menos graciosa do que eu me lembrava, irritada por ser filmada ao se deitar na areia, passando protetor solar, fritando naquele sol. E meu pai, sorrindo e acenando, com seu sempre presente cigarro; a parte realmente estranha foi perceber que aquele corpo de terceira idade parecia exatamente igual ao corpo que vejo refletido no espelho toda manhã quando saio do banho. Ali estava minha mãe, mais jovem, mais feliz. E ali estava eu, alegremente cego para com tudo. Tudo me pareceu estranhamente familiar, mas mais como um deja-vu do que uma lembrança real de um acontecimento real.

Eu tenho o anel do colégio da minha irmã, e o canivete do meu pai. Tenho cartas que ela me escrevia depois que foi para a faculdade. Tenho a carteira, feita por ele mesmo com aquele jacaré, escondido e alinhado com o papel de parede da nossa cozinha, de 1960. Tenho os cartões e cartas e fotos e vídeos dos meus amigos, Greg, Janet e Michael. Como Ruth Fisher [um dos personagens principais da série] diz: 'Estou cercada dessas lembranças de uma vida que já não existe mais". Mas essas lembranças são essenciais. O que mais temos para lembrar de alguém? O que mais podemos fazer senão tocar em alguma coisa que eles já escreveram, fizeram, vestiu? Como mais podemos alcançar aqueles entes queridos que se foram mas que ainda amamos, e nunca deixaremos de amar, mesmo sabendo que eles pararam de nos amar?

Esse livro é uma coletânera dessas lembranças - ainda que personagens fictícios, deixando personagens fictícios, mas para mim, esses personagens são muito reais. Eu sei que uns podem considerar isso como uma espécie de loucura, e eles estariam certos. Tive sorte o suficiente para trabalhar com pessoas igualmente loucas nesse livro - pessoas cuja loucura respeito enormemente - e que me deram um significado mais profundo para os Fishers [família principal] e aqueles com quem eles vivem e serão sempre inextricavelmente unidos."




- Alan Ball, criador de Six Feet Under, no prefácio do livro Six Feet Under: Better Living Through Death. um livro que ainda terei.