Manhã tumultuada no escritório. Clientes - irmãos - brigam sobre testamento dos pais. Lamentável como, assim que certas pessoas morrem, os familiares lutam pelas posses materiais deixadas pra trás.
Chuva. Bastante. Recebo uma ligação.
- Alô.
- Oi, é o senhor Lima, advogado de testamentos?
- Sim.
- Eu tenho uma amiga muito doente chamada Vanessa no hospital que quer fazer o testamento dela. Seria possível você visitá-la para fazer isso?
- Eu não visito clientes. Ela pode tentar ligar pro escritório e marcar um horário para essa semana. - Um pedido frequente. Se eu visitasse clientes, aí sim eles não teriam dinheiro o suficiente pra me pagar.
- A condição dela está muito mal. Ela não deve ter mais de uma semana de vida, não pode sair do hospital. - Triste. Uma pena. Mas me faltam paciência e tempo.
- Lamento, mas não posso ajudá-los.
Desligo. Pego o carro e saio, preciso em ir outra firma buscar documentos. A chuva continua e, com a neve acumulada na rua, faz aquela mistura nojenta e escorregadia característica do inverno. A mesma pessoa me liga de novo.
- Alô.
- Oi, senhor Smith, eu liguei faz pouco tempo sobre a minha amiga que está no hospital.
- Ah, sim, como eu falei, eu não poss-
- Conseguimos arranjar que ela saia e vá até o senhor. - Um esforço inesperado. Desnecessário? Por que não tentar outro advogado?
- Ah, ótimo, então. Quando?
- Podemos passar pelo seu escritório pelas cinco horas, mas ela não vai poder sair do carro. Está muito frágil, ainda mais com esse clima. - Agora me sinto mal.
- Tudo bem, vejo vocês então.
Desligo. Volto pro escritório e lido com mais famílias estressadas e materialistas. Contratos que vão e vem, palavras que não valem nada, palavras que machucam pessoas amadas. Dez minutos antes das cinco, eu desço e compro um café. Espero sentado na cafeteria. Tem muita gente aqui dentro, fugindo da chuva como eu. O chão daqui também está sujo e escorregadio. Vejo um carro parar na frente do prédio e meu celular toca. Saio e vou em direção ao carro.
Uma pessoa sai do banco de trás do carro. Pelo seu porte físico, imagino ser a pessoa que me ligou anteriormente.
- Boa tarde, senhor Lima, obrigado por nos ver. - Estamos conversando no meio da calçada, cada um com o seu guarda-chuva, falando alto por causa do barulho da rua, pessoas e água caindo. Tentando não atrapalhar os outros que passam.
- Boa tarde. Onde está Vanessa? - Estamos quase grudados no carro para deixar que as pessoas passem. Tantos guarda-chuvas.
- Aqui no banco de trás. Antes de ir, senhor, peço para que tenha em mente que a condição dela está muito frágil, de verdade, e ela não tem pouco tempo, então seja paciente. Obrigado por fazer isso, de novo. Pode entrar, eu vou comprar algo ali na cafeteria.
Ele vai embora e eu fecho o meu guarda chuva pra entrar no carro.
Vanessa está sentada do lado oposto do que eu entrei. Ela está com a janela aberta, olhando pra rua e com a mão fora do carro, tocando a água da chuva que cai incessantemente. Sem olhar para mim, ela diz:
- Não é um belo dia?